O papel da espiritualidade na terminalidade

“Todas as religiões, todas as artes e todas as ciências são ramos de uma mesma árvore. Todas essas aspirações visam ao enobrecimento da vida humana, elevando-a acima da esfera da existência puramente material e conduzindo o indivíduo para a liberdade” (Einstein)   

É inegável que a espiritualidade é uma característica humana que, dentre outros aspectos, proporciona ao indivíduo a possibilidade de encontrar significado e propósito para a sua vida. Embora estejam relacionadas, espiritualidade e religião não são equivalentes. As situações que antecedem e envolvem os processos de morte e o morrer estão entre aquelas em que a espiritualidade e a necessidade de conforto espiritual são visíveis. A crença religiosa traz contida em sua simbologia a sensação de acolhimento e proteção diante da morte.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu o cuidado espiritual no que tange aos cuidados totais para o paciente que se encontra em cuidados paliativos, pois auxilia no enfrentamento da angústia e do sofrimento, imprimindo-lhe algum sentido. A importância da espiritualidade no enfrentamento de uma doença terminal tem sido constantemente corroborada por algumas pesquisas. O bem-estar espiritual oferece proteção contra o desespero no fim da vida, ocasionando paz e significado para aqueles na iminência da morte (Liberato; Macieira, 2008).

Com efeito segundo Dias e Riba (2008), proporcionar assistência espiritual ao paciente não é fácil para os profissionais da saúde. “A espiritualidade é frequentemente confundida com religiosidade, e as crenças do outro nem sempre são compreendidas, respeitadas e aceitas”. Infelizmente, a visão de muitos profissionais da área médica que atuam em hospitais é de que os cuidados médicos e espirituais não sejam complementares, visão esta, no mínimo insensível quando um paciente está em processo de morte.

Contudo, se faz necessário distinguir espiritualidade de religiosidade. A espiritualidade é uma dimensão de cada ser humano, é a relação do indivíduo com o sagrado. E este sagrado pode ser definido e compreendido pelo indivíduo de várias formas diferentes.  Assim, a espiritualidade é entendida como um sistema de crenças filosóficas que transmite força e significado aos eventos da vida. Estas crenças possibilitam que as pessoas tenham atitudes positivas melhorando a sua qualidade de vida. Muitas pessoas expressam a sua espiritualidade por meio de uma religião, ou seja, possuem crenças, valores, estilo de vida, linguagem e práticas devocionais que pertencem a uma determinada instituição religiosa como, por exemplo, cristianismo, judaísmo, de matrizes africanas, espiritismo e várias outras. As práticas e as regras são as mais variadas: para uns, imagens são sagradas, para outros, locais são sagrados e cada um cultua a Deus de forma diferente. Cada religião possui uma proposta filosófica e um conjunto de regras que está contextualizada dentro de um sistema sócio-cultural. Cada religião possui dentro da sua doutrina um sistema de dogmas para explicar a morte. Conforme o contexto acima, pudemos observar que espiritualidade e religião não são iguais. Entretanto, pela religião também se pode alcançar a espiritualidade.

Nós psicólogos constantemente, em nossa prática clínica, nos defrontamos com inquietações sobre o tema e a relação estabelecida entre saúde, espiritualidade, fé ou religião e finitude, afinal, somos seres biopsicossociais e espirituais. Eu tive a honra de conversar com a Psicóloga Regina Liberato, uma estudiosa do assunto, sobre questões que permeiam este tema. Abaixo segue um pouco sobre o que conversamos.

Eu tenho feito esta pergunta aos meus entrevistados, falar de morte é um tabu?
Na opinião de Regina este tema já foi mais, pois hoje ela percebe um movimento maior de pessoas que começam a falar sobre este assunto de uma forma menos incômoda. Segundo Regina isto se deve ao esforço de várias pessoas que estão falando insistentemente sobre o assunto e provocando, de alguma forma, uma reflexão sobre morte e o morrer.

Questiono Regina sobre o que é espiritualidade (?)
Para ela, os dois conceitos estão interligados, mas são completamente diferentes. Segundo Regina, espiritualidade é quase inconceituável, pois é necessário acreditar na linguagem simbólica que a define, é uma parte complexa e multidimensional da experiência humana. Não se restringe a um grupo de pessoas, uma religião, ou uma cultura. Ela diz que há três palavras que estão intrinsicamente relacionadas à definição de espiritualidade: fé, transcendência e sagrado. Você pode expressar a sua espiritualidade, por exemplo, crendo numa força superior, contemplando a natureza e sua intensidade, expressando a sua compaixão e você pode expressá-la de várias outras formas. Ela cita Boff e Lama – para Boff a espiritualidade se expressa quando a gente se sente conectado com o universo. Para Lama a espiritualidade é um processo de transformação.

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Pergunto sobre o papel da espiritualidade em quadros crônicos em que o paciente se encontra em cuidados paliativos
Regina me diz que no seu entendimento o cuidado espiritual precisa ser mais contemplado, mais assistido nas equipes de cuidados paliativos. Segundo ela, o cuidado espiritual é absolutamente necessário em todas as fases da vida, especialmente no final dela, pois neste momento há um acúmulo de perdas e as pessoas se encontram mais sensíveis e, é justamente, a espiritualidade que dará um significado para a situação que este paciente e família está vivenciando.
A espiritualidade pode auxiliar no processo de enfrentamento da situação reduzindo o sofrimento e, posteriormente à morte, na elaboração do luto. Segundo ela, muitas das situações vivenciadas durante um processo de adoecimento são quase insuportáveis, mas a espiritualidade pode dar sentido a este sofrimento.
Contudo, mesmo quando a pessoa se diz ateu – e, como já vimos, espiritualidade é diferente de religiosidade – há várias formas de aproximarmos este paciente do sagrado como, por exemplo, por meio de uma música, uma poesia, uma pintura, pois a arte é um caminho para se expressar a espiritualidade. Regina diz que, precisamos descobrir onde “mora” o sagrado para aquela pessoa, pois é lá que está a dimensão espiritual. Para ela não há nada mais sagrado do que a história de vida de uma pessoa, como ela se expressou durante a sua existência e como ela se relacionou com esta existência.

Questiono Regina sobre a dificuldade dos médicos de agregarem a espiritualidade na prática da medicina
Para Regina os médicos possuem uma dificuldade de fazer uma ligação estreita entre a prática da medicina e a dimensão espiritual. Infelizmente, ciência e espiritualidade ainda não andam juntas. Para ela é absolutamente necessário –  na verdade, urgente – que algumas disciplinas entrem na grade curricular dos cursos de medicina como, por exemplo, a psicologia e estudos sobre espiritualidade. Pois, o olhar sobre este paciente em cuidados paliativos e, se possível, de todos os outros, precisa ser ampliado. É necessário ter conhecimento das diversas formas de expressão espiritual e, para isso, precisamos ler, estudar e observar. E, claro, assumir a responsabilidade pelo próprio desenvolvimento espiritual e aprender a cultivar a própria alma.

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Pergunto a Regina o que é necessário para mudarmos este cenário e incluirmos a espiritualidade no contexto médico/hospitalar (?)
Para ela é muito necessário que façamos mais pesquisas sobre a importância da espiritualidade na vida das pessoas. O trabalho dos profissionais da saúde precisa contemplar a dimensão espiritual, portanto precisamos de estudos para que as intervenções sejam mais efetivas e humana. Segundo Regina, há várias pesquisas que demonstram resultados altamente positivos sobre a importância da espiritualidade na fase final de vida, mas precisamos de muito mais.  Para ela, o mundo avançou por que algumas pessoas ousaram nos seus estudos sobre algo até provarem a importância desse “algo” para a sociedade. Portanto, nós precisamos avançar introduzindo novos horizontes até ser possível que os recursos espirituais sejam reconhecidos no cuidado do paciente.

No final da nossa conversa Regina enfatiza a importância de se observar o sagrado todos os dias no cotidiano no que está disponível, pois o sagrado está nas coisas comuns e se despede com uma frase que simplesmente adorei! Ela diz – “Viver é imperdível”.

Após esta conversa com Regina, eu penso que a ciência não é capaz de dar todas as respostas a todas as nossas perguntas, pois existem respostas que transcendem ao nosso entendimento e somente a dimensão espiritual é capaz de nos fornecer uma resposta plausível. Se faz necessário implementar efetivamente, nos serviços de saúde, cuidados holísticos – físico, psíquico, social e espiritual – e não apenas para os pacientes em processo de finitude, mas para todos que necessitam de cuidados médicos.

Design sem nome

Psic. Mestre em Cuidados Paliativos
Psic. Especialista em Perdas e Luto
Especialista em Psicologia Hospitalar
Psychotherapist Member of British Psychological Society (MBPsS/GBC)
Blog Perdas e Luto

Autora do Livro: Legado Digital: Conhecimento, Decisão e Significado – Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital

Este post teve a colaboração da Psicóloga Regina Liberato

Entrevistada: Regina Liberato – Psicóloga, psicoterapeuta especializada em Psicologia Analítica, Psiconeuroimunologia e Psicooncologia, coordenadora da Oficina de Convivência e do Núcleo de Programas Multiprofissionais do Instituto Oncoguia, colunista do Portal Oncoguia, presidente diretoria nacional da Sociedade Brasileira de Psicooncologia na gestão 2010-2013, professora do Instituto de Ciências Virtual da Faculdade de Ciências Médicas de MG nos cursos de pós-graduação em Psicooncologia e de Cuidados Paliativos. Adoro dançar, sou protetora de animais e acho que Viver é imperdível.

Referências:

Dyson, J.; Cobb, M.; Forman, D. The meaning of spirituality: a literature review. J Adv Nurs, 1997;26:1183-1188.

Jacobucci, A.N.P. Caracterização clínica e psicossocial de pacientes hospitalizados sob cuidados paliativos. 2010.

Liberato, R.P.; Macieira, R.C. Espiritualidade no enfrentamento do câncer. In: Carvalho VA, Franco MHP, Kovacs MJ, Liberato RP, Macieira RC, Veit MT et al. Temas em psico-oncologia. São Paulo: Summus; 2008.

Pessini, L.  Terminalidade e espiritualidade: uma reflexão a partir dos Códigos de Ética Médica brasileiros e leitura comparada de alguns países. Mundo saúde (Impr.); 33(1): 35-42, jan.- mar. 2009.

Riba, J.J.; Dias, J.P.C. Psicólogos. In: Juver J, Saltz E, organizadores. Cuidados paliativos em oncologia. Rio de Janeiro: Senac Rio; 2008.

Soares, M. Cuidando da família de pacientes em situação de terminalidade internados na unidade de terapia intensiva. Rev. bras. ter. intensiva, São Paulo, v. 19, n. 4, p. 481-484, Dec.  2007 .

Teixeira, E.F.B; Muller, M.C.; Silva, J.D.T. (Org). Espiritualidade e qualidade de vida. Porto Alegre:  EDIPUCRS, 2004. 224 p.

*Slides 1 e 2 foram cedidos por Regina e pertencem a sua aula intitulada: Espiritualidade: um caminho para a transformação

7 comentários sobre “O papel da espiritualidade na terminalidade

  1. “Para ela não há nada mais sagrado do que a história de vida de uma pessoa, como ela se expressou durante a sua existência e como ela se relacionou com esta existência” essa frase bateu em cheio!

    Essa conversa me lembro um texto que li já há algum tempo, “Regrets of the Dying”. É bem possível que você já conheça, mas de qualquer forma segue o link: http://bronnieware.com/regrets-of-the-dying/ Abraçs!

    Curtido por 1 pessoa

  2. Pingback: Capelania: A importância do Cuidado Espiritual em Cuidados Paliativos | PERDAS E LUTO

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