Raiva no processo de luto: como apreender essa emoção?

“Era raiva não. Era marca de dor” (Adélia Prado)

A raiva é uma emoção básica, que todos nós sentimentos, e que possui duas vertentes importantes. A primeira é que essa emoção nos impulsiona a fazer algo diante do que o cérebro interpreta como uma ameaça e a segunda é que se ela não for expressa de uma forma adequada pode trazer sérias complicações para a vida das pessoas. É uma emoção que pode destruir relações sociais, objetos e até mesmo nos fazer ter comportamentos autodestrutivos.

Ao nos referir à raiva, ela eclode quando algo que cremos, que nos é familiar, ou alguma visão que temos do mundo sofre uma ruptura. Essa emoção pode surgir em diversos contextos de nossa vida, como por exemplo: raiva do abismo social em que o mundo se encontra, raiva de um líder político que desencadeia uma guerra sem propósito, raiva ao vivenciar um ato de traição de pessoas que julgávamos confiáveis, quando algo nos é tirado, e em tantos outros contextos. Raiva é a reação natural para a dor seja ela física, psíquica ou emocional.

Apreendendo o surgimento dessa emoção, então, podemos ter uma ideia de o porquê a raiva ser uma das emoções mais predominantes num processo de luto. Ao perdermos um ente querido, principalmente, se for de uma forma injusta ou abrupta, as nossas crenças sobre o funcionamento do mundo é quebrada. Neste sentido, a ideia que tínhamos de que podemos controlar algumas situações se confronta com a realidade de que nós não controlamos os acontecimentos da vida. Isso é impossível. A ideia do não controle pode gerar ansiedade, sofrimento, angústia e até mesmo prejuízos à pessoa enlutada e às pessoas que estão ao seu entorno. Há pessoas que colapsam emocionalmente e ficam presas à raiva devido à perda que sofreram. Por isso, o manejo adequado dessa emoção é importante durante um processo de luto.

Quando perdemos um ente querido a dor é enorme e muitos questionamentos nos surgem à mente e, como resposta, a raiva aparece como uma reação natural à perda. Podemos sentir raiva das circunstâncias da morte, de alguns pessoas e/ou profissionais que estiveram envolvidos direta ou indiretamente com essa morte, de familiares e amigos pela incompreensão pelo momento vivenciado, por frases que nos são ditas e irritam profundamente, podemos sentir raiva até mesmo do ente querido que morreu por nos ter “abandonado” naquele momento da vida e, claro, podemos sentir raiva do destino e/ou de Deus por ter permitido que aquela pessoa tão especial para nós morresse. Muitas pessoas questionam o porquê que seu ente querido morreu, pois o “mundo está cheio de tantas pessoas más”.

Pode parecer estranho sentir raiva. Mas ficar com raiva é uma maneira de liberar energia, de protestar contra uma perda que não faz sentido ou parece injusta. Embora, no fundo, a pessoa saiba que aquela emoção não é lógica e muito menos tem uma justificativa plausível, ela continua a experimentando, porque as emoções humanas raramente seguem uma lógica.

Caso toda essa raiva não seja devidamente verbalizada e contextualizada, ela pode trazer algumas consequências para a pessoa enlutada. A raiva no processo de luto pode também se traduzir em doenças psicossomáticas. Assim, a raiva pode estar sendo deslocada e as reações mais comuns são: uma dor de estômago, cansaço físico e mental, cefaleias, insônia e uma maior tendência a ter infecções. Quadros clínicos, caso não sejam devidamente tratados, podem trazer complicações à saúde da pessoa que já vive um momento de fragilidade. O ponto importante e que requer muita atenção é a raiva direcionada a si mesmo e que, nesse tipo de situação, pode levar a pessoa a ter comportamentos tão perigosos quanto prejudiciais para a própria saúde. Há pessoas que recorrem à bebida alcoólica, aos jogos de azar ou a qualquer outro comportamento que lhes permita “esquecer” a dor da perda. Sem dúvida, são situações muito complicadas.

Algumas respostas físicas ajudam a liberar a raiva: bater um martelo, socar uma almofada, chutar um colchão. Liberar energia física ajuda. Gritar quando sentir vontade, sem vergonha, sem limite. Gritar bem alto. Botar para fora, contar para todo mundo que está com raiva, que está muito bravo, sem censura. Manter a raiva dentro de você pode ser mais arriscado do que não expressá-la.

Sentir raiva ao perder um ente querido é natural e faz parte do processo de assimilação e compreensão da perda. Afinal, a pessoa enlutada está vivenciando essa emoção porque ela está agoniada por saber que ela deixará de receber algo que nutria seu sentido, o eu/self. Contudo, caso perceba que ela está se estendendo por muito tempo e comprometendo seu bem-estar e seu cotidiano, procure ajuda especializada. Um processo de psicoterapia é recomendável, para ajudá-lo a compreender essa emoção e trazer ferramentas para o devido manejo no seu dia a dia. Você não precisa lidar com tudo isso sozinho, busque apoio e se cuide.

Psic. Mestre em Cuidados Paliativos
Psic. Especialista em Perdas e Luto
Especialista em Psicologia Hospitalar
Psychotherapist Member of British Psychological Society (GMBPsS)
Blog Perdas e Luto

Livro à VendaAutora do Livro: Legado Digital: Conhecimento, Decisão e Significado – Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital

Referências:

Adissi, G. Posso sentir raiva? Out. 2016. Vamos falar sobre o luto? [site]. Disponível em: http://vamosfalarsobreoluto.com.br/post_helping_others/posso-sentir-raiva/

Devine, M. Tudo bem não estar tudo bem: Vivendo o luto e a perda em um mundo que não aceita o sofrimento. Rio de Janeiro: Editora Sextante; 2021. 268p.

Murray, J. Why we need to talk about anger in grief. Marie Curie [site]. Jul. 2019. Disponível em: https://www.mariecurie.org.uk/talkabout/articles/anger-in-grief/253186

Sabater, V. A raiva no processo do luto. Nov. 2015. A mente é maravilhosa [site]. Disponível em: https://amenteemaravilhosa.com.br/raiva-no-processo-do-luto/

What’s Your Grief? [site]. Why Does Grief Make You Angry at Friends and Family? Jul. 2022. Disponível em: https://whatsyourgrief.com/anger-in-grief-makes-you-angry/

Perdas Secundárias no Luto: o efeito “dominó” de perder um ente querido

“Doeria mais tarde, quem sabe, de maneira insensata e ilusória como doem as perdas para sempre perdidas, e, portanto, irremediáveis, transformadas em memórias iguais pequenos paraísos-perdidos” (Caio Fernando Abreu)

Você já viu milhares de dominós caindo? Alguém passa muitas horas montando uma fileira complexa de dominós com diversos obstáculos. Cada dominó é estrategicamente colocado perto o suficiente de outro para ser capaz de atingi-lo à medida que cai. No momento apropriado, o primeiro na sequência vira, e isso desencadeia uma reação em cadeia. O primeiro dominó cai sobre o segundo, e assim vai, um após o outro, até que todos tenham caído.

Você deve estar se perguntando: Nazaré o que uma carreira de dominós caindo tem a ver com o luto? Metaforicamente muito! De uma forma estranha, essa cena singular é semelhante a um processo de luto. Um ente querido morre, mas essa perda não é a única e muitas vezes, desencadeia uma reação em série. A morte de um familiar pode levar a muitas perdas subsequentes que ocorrem como resultado direto dessa perda. Quando alguém experimenta várias perdas associadas à perda primária, a pessoa enlutada diz: “sinto que estou perdendo tudo”. Perder um ente querido frequentemente leva as pessoas para uma crise existencial, uma vez que os sentimentos e emoções associados ao luto, entre muitas coisas, muitas vezes mudam a identidade, a percepção de mundo e senso de si mesmo.

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Autocuidado: como atravessar um processo de luto?

“Durante o viver nós vamos enfrentar muitas dores e muitas tempestades. Precisamos descobrir como sobreviver diante do caos” (Psic. Nazaré Jacobucci)

A dor quando perdermos alguém a quem amamos é avassaladora e pode nos desorganizar psíquica e emocionalmente. Inevitavelmente vamos experienciar esta dor muitas vezes ao longo de nossas vidas, não temos como evitar a manifestação do luto após uma perda e infelizmente não temos como eliminar a dor. Afinal, a morte é um fenômeno natural e irrefutável da existência humana.

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Vamos conversar sobre a morte?

“Não podemos estar realmente vivos sem termos a consciência de que morreremos um dia” (Frank Ostaseski)

A sociedade moderna possui novos assuntos interditos e dentre eles está a morte. Hoje os pais conversam com seus filhos sobre drogas e métodos contraceptivos, porém na minha prática clínica/hospitalar tenho observado que pais e filhos não conversam sobre a morte. Quando algum membro da família começa a falar sobre este tema alguém automaticamente diz – para com isso, que assunto mais chato, tanta coisa boa para conversar e você quer falar de morte, que bobagem. No entanto, a morte faz parte do desenvolvimento humano e precisamos conversar sobre ela.

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Após a morte o que fazer com o corpo: enterrar, cremar, doar ou virar diamante?

“A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais” (Epicuro)

‎A morte visitará a todos nós em um determinado momento. Por isso, seria interessante nos preparamos para esta visita. Há aspectos práticos que a envolvem e lidar com eles num momento de extrema fragilidade psicoemocional pode se tornar desconfortável para a pessoa enlutada. Então, seria interessante contarmos para as pessoas em quem confiamos como queremos que seja tratado o nosso corpo após a morte. Dizer para os familiares o que gostaríamos que fosse feito durante e após o processo de morte e falar do que acreditamos que vai acontecer conosco depois da partida pode nos auxiliar a desmistificar o “fantasma” chamado morte. Contudo, isto só poderá ocorrer quando a família começar a falar sem reservas sobre a morte. Acredite, esta conversa pode ser esclarecedora.

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Natal após a morte de um ente querido‎

“Eu sei que este mês deve estar sendo um dos mais difíceis da sua vida. Eu sei que os dias que se aproximam do Natal serão difíceis, que as lágrimas virão aos olhos a qualquer recordação, que os dias serão mais longos, sem cor e apáticos. Eu sei que não conseguirei remover a dor que está em sua alma. Mas tenha uma certeza: não foi um adeus, foi tão somente um até breve” (Psic. Nazaré Jacobucci)

‎Estamos vivenciando uma das épocas mais significativas do calendário, o Natal. No entanto, se você perdeu um ente querido, um pai, uma mãe, um irmão e/ou um amigo próximo, este pode ser um período de tristeza e difícil de atravessar. O primeiro Natal sem um ente querido pode até ser algo que você teme, pois pode trazer de volta memórias do passado. Reuni algumas estratégias de enfrentamento, fornecidas por especialistas de várias instituições que trabalham com luto, que podem ajudá-lo a navegar por esse período Natalino sem seu ente querido.‎

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A gente vai embora

“Nossa imortalidade está condicionada à nossa gentileza, à maneira como tratamos conhecidos e desconhecidos” (Irvin Yalom)

Recentemente um amigo muito querido me enviou um texto que, segundo ele, tinha tudo a ver com o meu trabalho. De fato, o texto é interessante e expressa uma verdade absoluta sobre a morte e o morrer. Considerei que o mesmo é muito pertinente para ao momento atual da nossa sociedade que está cada vez mais se distanciando da consciência de que somos finitos e que ao final da nossa existência nada levaremos. Nem a conta bancária, nem títulos, nem condecorações e nenhum bem material. Por isso, decidi compartilhar com vocês as ideias contidas no texto. Eu mantive o texto original, no entanto fiz pequenos ajustes e acrescentei algumas ideias próprias que fazem parte da minha reflexão diária na lida com a morte, as perdas e o luto.

Adaptado e inspirado no texto original – A Gente vai Embora – da autoria de Jaqueline Reinelli.

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Legado Digital: quem herdará seu patrimônio digital após a sua morte?

“Quem era, como era. Somos só memória à espera de não sermos esquecidos” (Memória, Ana Bacalhau)

No dia 01 de junho eu defendi minha dissertação de mestrado e o tópico central desse trabalho de pesquisa foi sobre legado digital. Eu investiguei o conhecimento dos meus colegas da área da saúde que trabalham em unidades de cuidados paliativos, no Brasil e em Portugal, sobre esse tema. A pesquisa foi respondida por 243 profissionais, e como era de se esperar, 98,8% disseram ser usuários de plataformas de mídias digitais. Entretanto, 52,7% declararam não ter nenhum conhecimento sobre legado digital e 46,5% confessaram não ter nenhum conhecimento sobre a forma como as empresas provedoras de mídias tratam os dados de seus usuários após a sua morte.

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Cuidados Paliativos: benefícios, barreiras e desafios

“Cuidar é dar lugar dentro de mim ao sofrimento do outro” (Donald Woods Winnicott)

No segundo sábado de outubro de cada ano comemora-se o Dia Mundial de Cuidados Paliativos que, neste ano, foi comemorado no dia 09 de outubro. A data é marcada por ações unificadas para comemorar e apoiar os Cuidados Paliativos em todo o mundo. De acordo com a Worldwide Hospice Palliative Care Alliance (WHPCA), o tema escolhido para o Dia Mundial de Cuidados Paliativos deste ano foi  “Não deixe ninguém para trás – Equidade no acesso aos Cuidados Paliativos”, com o objetivo de fazer um apelo para o acesso equitativo de toda e qualquer pessoa a esta modalidade de cuidado que traz qualidade de vida, conforto e dignidade. Os cuidados paliativos são oferecidos em diversos serviços hospitalares ao redor do mundo e tem como objetivo central amenizar a dor e o sofrimento – sejam eles de origem física, psicológica, social ou espiritual – do indivíduo com uma doença sem possibilidade terapêutica de cura e/ou doença crônica. No entanto, infelizmente ainda temos algumas ideias erroneamente propagadas sobre esta forma de cuidar.

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Testamento: a importância de se manifestar os últimos desejos

“Testamento: morreu sem nada, deixou tudo para o amanhã” (Zack Magiezi)

A morte visitará a todos nós em um determinado momento. Por isso, seria interessante nos preparamos para esta visita. Neste sentido, tenho observado, na minha lida diária com pessoas enlutadas, que há um aspecto prático relacionado à morte que muitos não tem dado a devida atenção: o testamento. Refletir sobre o assunto é algo necessário para quem constituiu patrimônio em vida. Não temos o costume de fazer um testamento, seja pelo medo da morte, seja porque desconhecemos o instrumento, mas é algo muito importante. Além de distribuir o patrimônio, o documento serve para registrar outras manifestações de vontade. Outra função importante desse documento é evitar divergências entre os beneficiários pela partilha da herança, evitando disputas futuras entre seus herdeiros .

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