“A essência da etiqueta para a morte, o morrer e o luto na era das mídias digitais é ter bom senso, discrição e cuidado para com a dor do outro” (Nazaré Jacobucci)
Desde fevereiro de 2020 que a vida aqui na Europa começou a mudar gradualmente, e após meses o que nos era familiar agora nos é estranho. O familiar e seguro tornou-se desconhecido e, por vezes, ameaçador. A estabilidade física e mental foi violentamente lançada ao medo e à insegurança. Estar com entes queridos e pessoas do nosso convívio social é definido agora como perigoso. O primeiro país a experimentar esse estranhamento fora a Itália, país severamente afetado pela Covid-19, e logo todo o velho continente sucumbiu ao vírus. Assim como, outros continentes também foram implacavelmente afetados pela pandemia. A vida como pensávamos não existe mais. Tivemos que implementar, num curto espaço de tempo, novos hábitos, e estes incluem a digitalização do morrer e da morte.
Lembro-me de que certa vez, quando estava ministrando uma aula sobre “O Morrer, a Morte e o Luto nas Mídias Sociais” uma aluna questionou-me sobre a questão dos velórios virtuais, que já eram uma opção nos Estado Unidos, e o quanto esses poderiam ser um complicador para o processo de luto. Eu respondi que estar presente num momento único como este é muito importante e é sempre a melhor opção. Participar dos rituais fúnebres faz parte do processo de assimilação da perda e, consequentemente, contribui para o processo de luto. No entanto, o velório virtual poderia ser uma boa opção para aqueles que estão em outra cidade, ou até mesmo em outro país, poderem se fazer presentes no momento de despedida. Agora o despedir-se virtualmente não é uma alternativa adicional mas, em muitos lugares, a única opção.
Neste momento a tecnologia é uma aliada para nos conectarmos com pessoas em final de vida, familiares e amigos que estão perdendo entes queridos, não apenas pela Covid-19, mas também por outras comorbidades. A psicóloga Raquel Alves, de quem tenho o privilégio de ser amiga, disse algo interessante esta semana: nós estamos em isolamento físico, não social. Concordo com Raquel, pois os laços afetivos que baseiam as nossas relações sociais podem ser transportados para o ambiente virtual. No entanto, para interagirmos nesse ambiente, assim como na interação presencial, precisamos seguir algumas regras básicas. Neste sentido, após ler um guia cuidadosamente preparado pela plataforma Art of Dying Well que publicou Deathbed Etiquette, um guia de Etiqueta para o Leito de Morte que fornece conselhos e orientações durante este momento difícil, e por ser uma estudiosa da morte e do luto em ambientes virtuais há algum tempo, decidi escrever algumas dicas que podem nortear a comunicação na era digital.
Segundo Crocker e McLeod, a forma como interagimos online quando alguém está morrendo ou morreu deve ser modelada sobre o que faríamos se pudéssemos estar lá pessoalmente. Não é incomum a pessoa sentir-se constrangida ou insegura sobre o que dizer ou como agir online e/ou offline. Eu penso que, a chave para se comunicar, no contexto de morte e luto, seja agir com discrição. Abaixo irei discorrer sobre dois contextos que carecem de atenção neste momento.
No contexto hospitalar, infelizmente, hoje há severas restrições para se visitar alguém que esteja em final de vida. Portanto, nem todos os familiares poderão visitar um ente querido presencialmente. Mas é possível obter informações sobre o familiar por meio da tecnologia, claro, dentro das possibilidades do paciente e da própria instituição hospitalar. Caso o paciente esteja consciente, o ideal seria garantir que ele tenha um telefone ou tablet junto ao seu leito. Pois assim, ele próprio pode se comunicar com familiares e amigos, amenizando a sensação de estar sozinho num momento de extrema fragilidade.
Caso o paciente esteja numa situação mais comprometida clinicamente, então, nem todos poderão ter este encontro virtual, talvez, sejam escolhidos os familiares mais próximos do paciente e, na medida do possível, um familiar poderia ser designado para ser o porta voz das notícias para o restante da família. Mas, esteja preparado. Pode ser que, no final de vida, seu familiar possa estar muito mal ou muito sonolento para falar. Mesmo virtualmente tente fazer contato visual. Pode ser um momento para “sem palavras”; apenas um momento de companhia um do outro. Proporcionar um encontro virtual entre a pessoa em final de vida e seus familiares pode trazer um conforto psíquico emocional que fará diferença no processo de luto.

No contexto dos funerais, há diversas funerárias ao redor do mundo colocando à disposição dos clientes a forma online para velórios. Caso você seja convidado para um velório virtual e este disponha do serviço de enviar mensagens eletrônicas que serão entregues aos familiares posteriormente, escreva algo simples. Exemplo: enderece a sua mensagem para uma pessoa específica da família, a quem você for mais próximo. Você pode escrever – sinto muito por sua perda, meus sentimentos. Também poderá escrever um pequeno elogio à pessoa que morreu – Sr. ou Sra. X era uma pessoa incrível, foi um prazer trabalhar com ele/ela. E você pode terminar a mensagem se colocando à disposição para uma eventual necessidade que aquela família possa ter – deixe-me saber se há algo que possamos fazer para ajudá-lo. Assine com seu nome e sobrenome, caso você tenha uma apelido o coloque entre aspas, para que a pessoa possa identificá-lo de forma rápida.
Em relação às mídias sociais tais como: Facebook, Instagram e WhatsApp há de se ter muito cuidado ao expressar seus sentimentos. A primeira regra é: não comunique em qualquer mídia social a morte de alguém antes de se certificar que um familiar direto o tenha feito. Quando tomar conhecimento da morte de um familiar e/ou um amigo seja sucinto no seu comentário. Para mim não há melhor frase que esta – sinto muito por sua perda, meus sentimentos. Também não é aconselhável questionar nos comentários o porquê da morte, talvez, a pessoa enlutada não queira que a doença do ente querido que morreu seja exposta, por exemplo, no Facebook. Contenha a sua curiosidade.
Outra questão que muito tem me preocupado é em relação à exposição de pessoas, que não são figuras públicas, e que morreram em decorrência da Covid-19. Na semana passada eu tomei conhecimento de um grupo que fora criado no Facebook com a intenção de ser um memorial em homenagem às pessoas que morreram em virtude do Coronavírus. A intenção pode ser válida. No entanto, um familiar deve ser consultado e este precisa autorizar o uso da imagem de seu ente querido numa plataforma pública. Outro ponto a ser questionado é se a pessoa que morreu gostaria de pertencer a um memorial construído por pessoas totalmente desconhecidas por ela. Será que esta pessoa iria gostar de “viver para sempre” numa nuvem digital? Infelizmente essas pessoas que morreram não tiveram tempo, talvez, nem conhecimento para designar um cuidador para sua herança digital.
Há 2 anos eu estudo e trabalho com algo denominado Legado Digital, ou seja, o que a pessoa quer fazer com sua herança digital após a sua morte. Tenho orientado diversas pessoas sobre este assunto novo, complexo e delicado. Portanto, se você não é um familiar próximo da pessoa que morreu, você precisa ter muito cuidado ao expor a imagem e o motivo da morte desta pessoa em sua mídia social. Essa atitude de compartilhar a morte em plataformas virtuais, pode acarretar agravos no processo de luto do familiar que perdeu um ente querido. Este familiar, talvez, ainda esteja na primeira etapa de assimilação da perda e ver a imagem de seu ente querido exposto em mídias de pessoas desconhecidas pode lhe trazer desconforto e tristeza.
Como observou a Dra. Kathy Kortes-Miller, em seu livro Talking About Death Won’t Kill You (Falar sobre a morte não vai te matar), e como foi pontuado neste texto o quão complexo é navegar ao redor da morte, do morrer, do luto e da perda no universo online. No entanto, como disse Crocker e McLeod, enquanto vamos nos adaptando às normas e regras da comunicação por meio da tecnologia virtual, a maneira como nos conectamos e nos comunicamos com o humano permanecem as mesmas. Seja gentil, sincero, útil e, principalmente cuidadoso para com a dor do outro. Este cuidado pode ajudar seu familiar e/ou amigo que está vivenciando um momento de fragilidade a passar pela dor da perda com mais segurança.

Psic. Mestre em Cuidados Paliativos
Psic. Especialista em Perdas e Luto
Especialista em Psicologia Hospitalar
Psychotherapist Member of British Psychological Society (MBPsS/GBC)
Blog Perdas e Luto
Autora do Livro: Legado Digital: Conhecimento, Decisão e Significado – Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital
Referências:
Art of Dying Well [site]. Deathbed etiquette and the coronavirus (COVID-19). Disponível em: https://www.artofdyingwell.org/caring-for-the-dying/deathbed-etiquette/deathbed-etiquette-and-the-coronavirus-covid-19/
Crocker, A.; McLeod, V. Digital legacy plan: a guide to the personal and practical elements of your digital life before you die. Canada: International Self-Counsel Press Ltd., 2019. 120 p. (Series: Self-Counsel reference series).
Kortes-Miller, K. Talking About Death Won’t Kill You: The Essential Guide to End-of-Life Conversations. Canada: ECW Press, 2018. 216 p.
Bom dia !
Me chamo Elizandra, sou enfermeira e trabalho com cuidados paliativos.
Muito esclarecedor sua escrita.
Até pouco tempo falávamos em morte digna, direito e desejo do paciente e assim, num piscar de olhos estamos vivendo este momento delicado.
Muito grata por você compartilhar este conhecimento com tanto cuidado, e tão humanizado.
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Olá Elizandra! Obrigada pelo gentil comentário. Abs, Nazaré Jacobucci
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Oportuna a abordagem sobre a tecnologia e o momento atual, em que o volume de mortes era inconcebível a poucos meses, e o que é pior, ter como causa um vírus altamente contagioso. A humanidade teve e tem que se adaptar rapidamente aos novos acontecimentos, quanto ao isolamento social, a participação em eventos à distância, inclusive nos velórios virtuais, sob pena de viver a sensação de perda continua, sem possibilidade de minimiza-la, devido às próprias circunstancias em que estamos vivendo.
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Olá Maria Amélia! Obrigada pelo comentário. Sim, tempos estranhos. Exigirá de nós flexibilidade e resiliência diante do novo. Abs, Nazaré Jacobucci
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Querida Nazaré,
Lindo seu texto, direto e amoroso.
Vou compsrtilhar com pessoas queridas.
Bjs
Sandra
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Meu filho de 4 anos, perdeu o avô de forma trágica, sofreu uma queda de um telhado, ele viu o avô caído no chão, sendo reanimado, todo o socorro, ele teve momentos de negação, não o levamos para o velório, e agora ele nos cobra isso. Foi muito traumatizante e ficamos com medo de piorar, quando visse o avô um pouco diferente do que ele era, ele questiona muito sobre o acidente, muitas vezes com raiva do avô como se a culpa fosse do avô, ele questiona pq ele não tentou cair de outro jeito, porque ele não se defendeu, coisas do tipo. Ele está muito agressivo com os próximos, sono agitado, fui em um psicólogo e me falou que nos primeiros 30 dias seria normal. Ele ainda não sabe lidar com os sentimentos. Como conseguir ajudá-lo nesse momento tão difícil, dessa perda de um avô tão presente na vida dele.
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Olá Alinne! Sinto muito pela sua perda, meus sentimentos. De fato a perda é muito recente e de uma pessoa muito significativa para seu filho, por isso seu filho ainda necessitará de um pouco mais de tempo para assimilar a perda do avô. Algo importante é que a família não reprima os sentimentos dele e deixá-lo expressar da maneira que ele quiser. Observe após seis meses como ele emocionalmente e o humor, caso você perceba que há uma alteração considerável, busque ajuda profissional. Abs, Nazaré Jacobucci
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