O Significado da Morte e o Processo de Luto na visão do Judaísmo

“E o Todo Poderoso formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas a alma da vida”. (Toráh)

Dando continuidade aos posts sobre a compreensão da morte em determinadas religiões, abordaremos neste post o Judaísmo. Exploraremos como os fiéis dessa religião se relacionam com a realidade da morte e buscaremos compreender o significado de seus rituais.

O judaísmo é considerado a primeira religião monoteísta da história. Tem como crença principal a existência de apenas um Deus, o criador de tudo. Para os judeus, Deus fez um acordo com os hebreus, fazendo com que eles se tornassem o povo escolhido e prometendo-lhes a terra prometida.

De acordo com as escrituras sagradas, por volta de 1800 a.C, Abraão recebeu um sinal de Deus para abandonar o politeísmo e viver em Canaã (atual Palestina). Abraão, considerado o patriarca do povo judeu, teve um filho chamado Isaac e este tem um filho chamado Jacob, que, o anjo mudou o nome para Israel. Este teve 12 filhos dos quais se formariam as doze tribos de Israel, dando origem, assim, ao povo judeu. Por volta de 1650 a.C, o povo judeu migra para o Egito, onde são escravizados pelos faraós por aproximadamente 400 anos, como havia sido dito pelo próprio Deus a Abraão. A libertação do povo judeu ocorre por volta de 1300 a.C. A libertação e fuga do Egito foi comandada por Moisés. Após atravessarem o Mar Vermelho o povo comandado por Moisés ainda permanece durante 40 anos peregrinando pelo deserto, até receber um sinal de Deus para voltarem para a terra prometida, Canaã.
Nesse tempo Moisés recebe, no Monte Sinai, as tábuas com os 10 primeiros dos 613 mandamentos da Toráh, que é o livro sagrado dos Judeus, e criou-se o Tabernáculo.

Entretanto, após a conquista gradativa de Canaã, não havia uma unidade nacional, o país estava dividido em 12 tribos lideradas por seus próprios Patriarcas, mas tendo em comum a mesma religião, a língua e as tradições culturais. Por isso, o povo entendeu que só uma monarquia forte, como tinham os países vizinhos, e, portanto, um Rei que os unisse, é que lhes poderia proporcionar vitórias, conquistas e paz. Por volta de 1200 a.C dá-se início ao reinado de Saul da tribo de Benjamin como o primeiro Rei de Israel unificado. Saul foi sucedido por David. O reinado de Davi foi dos mais notáveis da história de Israel, conquistando Jerusalém e fazendo dela a Capital do Reino de Israel. No entanto, Davi não conseguiu construir o Templo, o que só foi realizado por seu filho Salomão. Após o reinado de Salomão, filho de Davi, as tribos dividem-se em dois reinos: Reino de Israel e Reino de Judá. Neste momento de separação, aparece a crença da vinda de um messias que iria juntar o povo de Israel e restaurar o poder de Deus sobre o mundo.

Em 536 a.C começa a diáspora judaica com a invasão babilônica. O imperador da Babilônia, após invadir o reino de Israel, destrói o templo de Jerusalém e deporta grande parte da população judaica. No século I, os romanos invadem a Palestina e destroem o templo de Jerusalém. No século seguinte, destroem a cidade de Jerusalém, provocando a segunda diáspora judaica. Após estes acontecimentos, os judeus espalham-se pelo mundo, conservando a cultura e a religião. Em 1948, como resultado da comoção causada pelo Holocausto, o povo judeu retoma o direito de estabelecer um estado independente na região da Palestina, o estado de Israel.

A tradição judaica nos ensina a encarar a morte com respeito, porém não devemos teme-la. De acordo com os pressupostos do Judaísmo a criação do homem atesta a vida eterna da alma. Para os judeus, no ser humano foi plantada a semente da eternidade. Para os judeus, na morte, a alma e o corpo, que formavam uma entidade, se separam. O corpo é enterrado e volta à matéria perdendo toda sua conexão com a vitalidade. Já a alma é eterna, e se transfere deste mundo para o próximo, um mundo inteiramente espiritual. Essa transferência se dá por etapas: enquanto o corpo passa por um processo lento de decomposição essencial para a separação gradual entre corpo e alma, a alma judaica passa por vários estágios se desligando gradativamente deste mundo: primeiro a morte, depois o enterro, 3 dias após a morte, uma semana após a morte, 30 dias após a morte, 3 meses após a morte, 11 meses após a morte, e finalmente um ano após a morte. Segundo Leone, diante da morte o Judaísmo nos ensina a buscar uma maior consciência sobre a maravilha do existir. Leone escreve – “nossos ritos e ensinamentos relacionados à morte são o meio pelo qual somos convidados a contemplar a árvore da vida que engloba toda a existência. É nesse sentido que a morte é descrita muitas vezes na Toráh como um retorno para casa”. (Leone, 2007).

Post_Judaismo

Para compreendermos um pouco sobre os ritos de passagem do Judaísmo, eu tive a honra de entrevistar o Rabino Pablo Berman, sobre questões que permeiam este tema. Abaixo seguem os principais pontos da entrevista.

Como os Judeus compreendem a morte? Qual o seu significado?
No tratado talmúdico Ética dos Pais (Pirkei Avot 4:16), Rabbi Yaacov expressou uma visão da vida que capturou a imaginação de muitos judeus: “Este mundo é como um saguão, como um corredor (prozdor) antes do mundo vindouro (olam haba), temos que nos preparar no saguão para poder entrar ao grande salão”. Essa é a ideia da morte como parte da vida e que não temos uma sem a outra.
O Midrash, ou seja, os relatos dos rabinos, nos conta sobre dois navios que navegavam próximos à praia, um em direção ao mar e outro se aproximava do porto. As pessoas ali reunidas se despediam com alegria do barco que ia, e colocavam pouca atenção ao que chegava. Um homem sábio, que observava a cena, sentiu que tinha uma grande contradição. Segundo ele, o barco que zarpava não deveria ser motivo de alegria, porque ninguém sabia o que encontraria em sua longa travessia. Mas sim, deveriam saudar o barco que chegava, porque cumpria com seu destino de ver concluída sua jornada em paz.
Quando um ser querido falece, deveríamos sentir paz no espírito ao reconhecer que chegou seu destino e completou a viagem.

Por que os Judeus precisam ser enterrados o mais rápido possível? E o que é o ritual religioso chamado Tahara?
Os rituais judaicos de morte e luto estão regidos por dois princípios básicos: “kvod hamet”, o respeito ao morto, e “kvod hachaim”, a consideração dos sentimentos dos vivos. Quando a lei judia ordena que o funeral deve ter lugar dentro das 24 horas após a morte, se preocupa com o “kvod hamet”, porque deixar um corpo sem enterrar durante um período prolongado é considerado falta de respeito.
A Tahara significa a purificação da pessoa falecida, lavando o corpo antes de ser enterrado. A tradição judia indica que assim como o corpo chega puro a este mundo, deve também voltar puro. A lavagem se faz com água morna e é realizada por um grupo de pessoas voluntárias que se chamam “chevra kadisha”, que poderíamos traduzir como a sociedade ou grupo santo. Porque a tarefa que realizam é santa.

Quais são os rituais judaicos durante o sepultamento?
Como explicamos, o primeiro é a Tahara, a purificação do corpo através da água e logo o corpo da pessoa é vestido com roupas brancas denominadas “tachrichim”. Todos são vestidos com as mesmas roupas brancas que representam a pureza e que todos nós vamos vestidos do mesmo modo.

Por que os familiares enlutados rasgam as próprias roupas antes do funeral?
Rasgar as roupas chama-se “kria” é um antigo e tradicional sinal de luto, entre os judeus, que remonta a tempos bíblicos, e realizamos a kria como uma expressão de dor que sentimos pela perda de um ente querido, por isso rasgamos as roupas para deixar à vista a dor que sentimos no coração. O primeiro registro desse costume encontra-se no livro de Gênesis, quando o patriarca Yaacov rasgou suas roupas ao saber que seu filho José tinha morrido. Simboliza o início da consciência do processo de luto.

Por que os Judeus têm o costume de colocar uma pedrinha em cima da lápide dos túmulos?
A pedra é eterna como a alma. O costume de colocar flores não é tão comum no judaísmo. Somos pó como a pedra e voltamos ao pó assim como diz Deus a Adão no texto de Gênesis. A pedra também indica que nunca vamos esquecer nosso ser querido.

Qual a visão do Judaísmo sobre o mundo espiritual?
As almas são eternas. Acreditamos que não somente somos um corpo. O corpo retorna à terra, mas nossas almas continuam sempre com vida, iluminando os caminhos dos vivos. Acreditamos também no que chamamos “tchiat hametim”, ou seja, a ressurreição dos mortos, assim como relata o profeta Ezequiel em sua visão. Isso acontecerá quando o Messias chegar, descendente da Casa de Davi.

Os Judeus podem ser cremados?
Não. A tradição judia não vê com bons olhos essa prática. O corpo deve retornar à terra tal como veio, e ali transformar-se em pó. Também está relacionando com o que os nazistas fizeram com 6 milhões de irmãos do povo judeu. Fomos cremados por outros, mas nunca, jamais, por nós mesmos.

Dentre os rituais ligados à morte o que os familiares fazem com os pertences da pessoa que morreu?
Existem diferentes costumes com isso. Pessoalmente, acredito que se as roupas estão em bom estado, devem ser doadas às pessoas pobres que não têm o que vestir.

Como é vivenciado o processo de luto pelos familiares e amigos?
O judaísmo se preocupa muito com os vivos. É o que chamamos “kvod hachaim”, a consideração dos sentimentos dos vivos. Os rituais judaicos estão pensados para que os parentes não fiquem sozinhos em nenhum momento. A preocupação com o bem-estar mental, emocional e espiritual dos enlutados, e a necessidade de consolá-Ios, é um dever fundamental no Judaísmo. A Lei Judaica estipula períodos sucessivos de luto, que vão gradualmente diminuindo de intensidade. Na “shivá” os sete primeiros dias de luto, os parentes são acompanhados, são feitas rezas nas suas casas, são levadas comidas, tudo para estarem com eles, e rezar pela alma do ente querido que voltou a se unir com a Eternidade.
O segundo período de luto é conhecido como Sheloshim (“trinta”); este inicia-se com o fim da Shivá, no 7º dia após o enterro, e estende-se por mais 23 dias, até o nascer do sol do 30º dia após o enterro. O último ciclo se encerra quando se completa 1 ano da morte do ente querido.

Eu penso que compreender a linguagem simbólica das religiões é de suma importância na lida diária dos psicólogos para que possamos acolher a dor de nossos pacientes de forma integral.

Shalom!

Design sem nome

Psic. Mestre em Cuidados Paliativos
Psic. Especialista em Perdas e Luto
Especialista em Psicologia Hospitalar
Psychotherapist Member of British Psychological Society (MBPsS/GBC)
Blog Perdas e Luto

Livro à VendaAutora do Livro: Legado Digital: Conhecimento, Decisão e Significado – Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital

Este post teve a colaboração do Rabino Pablo Berman, atualmente ele desempenha sua tarefa como Rabino, na Comunidade Judaica do Paraná, em Curitiba (PR). Cursou seus estudos rabínicos no Seminário Rabínico Latino-americano Marshall T. Meyer, na cidade de Buenos Aires, e seu último ano de estudos foi no Machon Schechter, na cidade de  Jerusalém, em Israel. Obteve seu título rabínico no ano de 2005. Já atuou como Rabino em diferentes comunidades judaicas em Buenos Aires e foi Rabino da Comunidade Judaica de El Salvador, na América Central, entre os anos de 2005 e 2009. O Rabino Pablo Berman é também Arquiteto, com formação pela Universidade de Buenos Aires. Ele é argentino, tem 48 anos, casado e tem dois filhos.

Referências:

Fridlin J. Com as leis de assistência aos enfermos e do luto judaico. Sociedade Cemitério Israelita de São Paulo CHEVRA KADISHA. Set. 2006.
http://chevrakadisha.org.br/wp-content/uploads/2014/05/mincha-e-arvit_leis-do-luto.pdf

Leal F.F. História do Judaísmo. 15/out. 2009. http://conhecerojudaismo.blogspot.co.uk/2011/08/historia-do-judaismo.html

Rabino Leone A. Judaísmo, Ritos de Passagem e Visão Pós-Morte. In: Incontri D., Santos FS, organizadores. A arte de morrer – visões plurais. Vol. 1. Bragança Paulista: Comenius; 2007. p. 249-259.

Vida após a vida. http://www.chabad.org.br/biblioteca/artigos/vida/home.html#top

10 comentários sobre “O Significado da Morte e o Processo de Luto na visão do Judaísmo

  1. Todas as crenças e rituais apontam para um lugar comum: a imortalidade da alma. O corpo que volta ao pó e a alma libertada do corpo, O destino da alma varia: céu/inferno. Reencarnação, etc. etc., porém a existência da alma é reconhecida.

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  2. Muito obrigada pelo artigo.Estou estudando na escola o significado da morte nas diferentes religiões, e sua publicação me ajudou muito. É muito importante compreender as diferentes religioes para assim assim não julgar o próximo.

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    • Olá Júlio César! Eu desconheço essa informação sobre o terceiro dia. A pedra tumular (Matzeivá em hebraico) pode ser colocada a partir do término da Shivá, que se refere ao período de sete dias de luto fechado, contados a partir do dia do enterro. No entanto, o mais comum é esperar decorrer um ano para inaugurar a Matzeivá. Abs, Nazaré Jacobucci

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