O Significado da Morte e o Processo de Luto nas Religiões de Matrizes Africana: Candomblé

 Obatalá cria Ikú, a Morte 
Quando o mundo foi criado, coube a Obatalá a criação do homem. O homem foi criado e povoou a Terra. Cada natureza da Terra, cada mistério e segredo, foi tudo governado pelos orixás. Com atenção e oferenda aos orixás, tudo o homem conquistava. Mas os seres humanos começaram a se imaginar com os poderes que eram próprios dos orixás. Os homens deixaram de alimentar as divindades. Os homens, imortais que eram, pensavam em si mesmos como deuses. Não precisavam de outros deuses. 
Cansado dos desmandos dos humanos, a quem criara na origem do mundo, Obatalá decidiu viver com os orixás no espaço sagrado que fica entre o Àiyé, a Terra, e o Órun, o Céu. E Obatalá decidiu que os homens deveriam morrer; Cada um num certo tempo, numa certa hora. Então Obatalá criou Ikú, a Morte. E a encarregou de fazer morrer todos os humanos. Obatalá impôs, contudo, à morte (Ikú) uma condição: só Olódumaré podia decidir a hora de morrer de cada homem. A Morte leva, mas a Morte não decide a hora de morrer. O mistério maior pertence exclusivamente a Olórun(Bandeira, 2010)

A morte faz parte do desenvolvimento humano. Em algum momento de nossa existência iremos partir em definitivo. Este é o destino inexorável de todo ser vivo e, dentre esses, de todo ser humano. A morte se inscreve em cada um desde o nascimento. Contudo, quando falamos sobre a morte é importante compreendermos como cada indivíduo, como a sociedade em que ele está inserido e como a religião que ele professa, a compreende. A crença religiosa professada pelo indivíduo é muito importante, pois é por meio dessa crença que ele fará a interpretação deste advento.

O antropólogo Lévi-Strauss, sugere que o primeiro ponto a ser considerado em relação à morte é a força que essa possui de abalar o cotidiano das pessoas e do mundo, e que a religião busca integrar a morte na ordenação de sentido da existência humana. A religião seria, então, com suas práticas e crenças, responsável por legitimar a morte e permitir ao indivíduo continuar vivendo em sociedade, após a perda de seus entes queridos. Ainda segundo Lévi-Strauss, os “rituais mortuários são providências concretas para a manutenção da realidade em face da morte”. O autor segue destacando a importância dos rituais para aqueles que se confrontam com a morte, como forma de “retomar/recomeçar suas realidades sustentando o diálogo social”. (Barbosa, 2006).

Historicamente, as religiões sempre foram o abrigo que protegia o homem do medo da morte. A maioria das religiões traz contida em sua simbologia a sensação de acolhimento e proteção diante da morte. O papel das religiões, no tocante à realidade da morte, é a transmissão da mensagem de que ela não é o fim da existência e de que, de alguma maneira, de acordo com diferentes doutrinas religiosas, a vida continua após a morte.

Dentre as várias religiões professadas no mundo, abordaremos neste post o Candomblé. Exploraremos como os fiéis dessa religião de matriz africana se relacionam com a realidade da morte. Buscaremos compreender o significado de seus rituais, uma vez que estes diferem da maioria das religiões de cunho cristão.

O candomblé, religião de origem africana, é a religião dos orixás. O candomblé possui várias nações como, por exemplo, Angola, Ketu, Nagô e Jeje. A palavra nação é usada no candomblé para distinguir seus segmentos, diferenciados pelo dialeto utilizado nos rituais, o toque dos atabaques, a liturgia. No candomblé, os orixás são os deuses supremos. Possuem personalidade e habilidades distintas, bem como preferências ritualísticas. Estes também escolhem as pessoas que utilizam para incorporar no ato do nascimento, podendo compartilhá-lo com outro orixá, caso necessário. No candomblé as tradições são transmitidas oralmente. Não há nenhum texto que ganhe o status de uma escritura sagrada. “A oralidade é um instrumento a serviço da estrutura dinâmica da religião. A dinâmica do sistema recorre a um meio de comunicação que deve se realizar constantemente. Augras faz um importante complemento quando diz que, além da palavra, a transmissão do saber iniciático faz-se por meio dos gestos, da dança, do canto, dos atabaques, do ritmo e da emoção que o som exprime”. (Barbosa, 2006).

Na interpretação do candomblé o morrer é passar para outra dimensão e permanecer junto com os outros espíritos, orixás e guias. Trabalha com a força da natureza existente entre o mundo material (Àiyé) e o céu (Órun). No candomblé, a morte não significa a extinção total, ou aniquilamento. Morrer é uma mudança de estado, de plano de existência; fazendo parte do ciclo, ao mesmo tempo religioso e vital, que possui início, meio e fim. (Bandeira, 2010).

Segundo Barbosa, os rituais de morte do candomblé superam os rituais modernos em tempo e significado. São longos e sofisticados e buscam, além de dar caminho ao espírito do morto, trazer ensinamentos àqueles que ficam: o ritual do sirrum, que é o caminhar e recuar na estrada da vida até o encontro final com a morte; a quebra dos pertences do morto para não só desligá-lo das coisas desse mundo, mas também mostrar aos outros essa ruptura; o ritual do axexê, a morte compartilhada, revisitada por sete dias consecutivos, buscando reordenar as relações sociais dentro da comunidade; a refeição coletiva, o mais velho cedendo lugar ao mais novo, na ininterrupta renovação da vida. Tudo isso faz parte do complexo e fascinante universo do candomblé.

Para compreendermos um pouco sobre os ritos de passagem do candomblé eu tive a honra de entrevistar a Pedagoga Denise Botelho, uma estudiosa do assunto e praticante do candomblé da nação Ketu, sobre questões que permeiam este tema. Abaixo seguem os principais pontos da entrevista.

Como os praticantes do candomblé compreendem a morte? Qual o seu significado?
A morte faz parte da vida, muda-se apenas a existência, mas o espírito persiste. Para nós, bom é morrer com muitos anos de vida. Pois, vida longa é sinal de que você viveu em sintonia com os desígnios divinos.

O que é Axexê?  E quais são os rituais funerários dedicados aos mortos?
O Axexê é o ritual fúnebre que se realiza quando uma pessoa iniciada no candomblé morre. É um ritual complexo, pois possibilita desfazer o que se tinha feito na feitura do santo. Começa-se com a preparação do corpo para o enterro, depois é seguido de muitos cânticos e, segue-se por outros momentos específicos até completar um ano do falecimento da pessoa. Quando uma Iyalorixá ou Babalorixá (lideranças das casas de candomblé) morre o terreiro fica um ano sem atividades litúrgicas.

Você poderia nos explicar o papel de Iansã, a senhora dos cemitérios, e Omolú no contexto dos rituais do candomblé?

Iansa

Iansã na verdade é a Senhora dos Ventos e esta divindade é que tem o poder de conduzir os espíritos que faleceram ao Órum (mundo da não matéria). O mito revela que o primeiro Axexê foi realizado por Iansã.
O mito conta que “Vivia em terras de keto um caçador chamado Odulecê, que era o líder de todos os caçadores, e que tomou por sua filha uma menina nascida em Irá, que por seus modos espertos e ligeiros era conhecida por OIÁ.
OIÁ tornou-se logo a predileta do velho caçador, conquistando um lugar de destaque naquele povo. Mas um dia a morte levou Odulecê, deixando OIÁ muito triste.
A jovem pensou numa forma de homenagear o seu pai adotivo. Reuniu todos os instrumentos de caça de Odulecê e enrolou-os num pano. Também preparou todas as iguarias que ele tanto gostava de saborear.
Dançou e cantou por sete dias, espalhando por toda parte, com seu vento, o seu canto, fazendo com que se reunissem no local todos os caçadores da terra.
OIÁ embrenhou-se mata adentro e depositou ao pé de uma árvore sagrada os pertences de Odulecê.
Olórun, que tudo via, emocionou-se com o gesto de OIÁ e deu-lhe o poder de ser a guia dos mortos no caminho do Orum. Transformou Odulecê em orixá e OIÁ na Mãe dos espaços dos espíritos.
Desde então todo aquele que morre tem seu espírito levado ao Orum por OIÁ.
Antes, porém, deve ser homenageado por seus entes queridos, numa festa com comidas, canto e danças”.

Omulu Orixá da Morte

Omulú é o Senhor da Terra, que vai receber o corpo para a transformação
“Dono das lanças certeiras, quem era atingido tornava-se cego. Quando se sentia desrespeitado mandava a peste.
Relaciona-se também com os espíritos contidos na terra. O colar que o simboliza é o ladgiba, cujas contas são feitas da semente existente dentro da fruta do Igi-Opê ou Ogi-Opê, palmeiras pretas. Usa também bradga, um colar grande de cauris.
Seu poder está extraordinariamente ligado à morte. Ele lidera e detém o poder dos espíritos e dos ancestrais, os quais o seguem.  Ele é a própria terra que recebe nossos corpos para que vire pó. Divide com Iansã a regência dos cemitérios, pois ele é o Orixá que vem como emissário de Oxalá, princípio ativo da morte, para buscar o espírito desencarnado.
É Omulú que vai mostrar o caminho, servir de guia para aquela alma. Senhor da Terra e das camadas de seu interior, para onde vamos todos nós. Daí a ligação que tem com os mortos, pois ele é quem vai cuidar do corpo sem vida, e guiar o espírito que deixou aquele corpo.
É por isso que Omulú gosta de coisas passadas, apodrecidas. A participação de Omulú nos rituais africanistas é imprescindível. É ele o regente da feitiçaria e da magia. Orixá responsável pelo processo de transformação de energias.
Enquanto Obaluaiê se responsabiliza pela doença e a cura, Omulú se responsabiliza em castigar os malfeitores e descrentes, castigando-os com as doenças e, em consequência, a morte, se não for reverenciado.
Seu maior castigo é a presença de doenças como, por exemplo a varíola, doença pela qual ele é mais conhecido. À morte dá continuidade a existência espiritual.
Porém, ao sentir que não há mais necessidade que o espírito continue a caminhar, Omulú assume seu papel de, através do corpo, devolver à terra a continuidade da evolução, e entrega o espírito ao Órum.
O xaxará de Omulú, como se fosse uma vassoura, varre a morte. Não deve ser temido, porém respeitado”.

Os praticantes do candomblé podem ser cremados?
Não, os nossos corpos devem retornar a terra, para completar o ciclo da vida.

Dentre os rituais ligados à morte o que os familiares fazem com os pertences da pessoa que morreu?
Junta-se todos seus pertences pessoais utilizados em sacrifícios e obrigações, como roupas, colares e se faz uma consulta oracular (jogo de búzio) para se saber do destino dos objetos separados.

Como é vivenciado o processo de luto pelos familiares e amigos?
No enterro as pessoas vestem-se de branco, como seres humanos, sentimos saudades dos nossos entes queridos, mas eles permanecem conosco e são reverenciados por seus grandes feitos, por isso que viver de forma digna é condição fundamental para seguir o seu destino, mesmo depois da morte.

Denise ressalta que suas respostas não são dogmas dentro do candomblé porque, como os ensinamentos são passados de forma oral, existem variações de casa para casa.

Eu penso que há uma ausência de reflexão sobre o fenômeno religioso na vida do ser humano por parte da psicologia. Por isso, eu penso ser papel do psicólogo compreender e dar voz a todas as maneiras que o ser humano possui para se expressar no mundo e, claro, a religião é uma delas.

Axé!

Design sem nome

Psic. Mestre em Cuidados Paliativos
Psic. Especialista em Perdas e Luto
Especialista em Psicologia Hospitalar
Psychotherapist Member of British Psychological Society (MBPsS/GBC)
Blog Perdas e Luto 

Livro à VendaAutora do Livro: Legado Digital: Conhecimento, Decisão e Significado – Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital

Este post teve a colaboração da Pedagoga Profa. Dra. Denise Maria Botelho

Professora Associada do Departamento de Educação (DED) da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Professora-Orientadora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Culturas e Identidades (PPGECI) nas linhas de pesquisas 1- Movimentos Sociais, Práticas Educativo-Culturais e Identidades e 3 – Políticas, Programas e Gestão de Processos Educacionais e Culturais. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Raça, Gênero e Sexualidades “Audre Lorde” (Geperges Audre Lorde). Desenvolve atividades de ensino, extensão e pesquisa nas áreas de educação e relações raciais, de gênero e de sexualidades; políticas educacionais e ensino religioso e religiões de matrizes africanas.

Referências:
Bandeira LCC. A morte e o culto aos ancestrais nas religiões afro-brasileiras. Último Andar (19), 1-70. 2º Semestre; 2010.
Barbosa D. A Escuta do Filho de Santo sobre a Morte: entre o silêncio do ocidente moderno e a fala do candomblé. Dissertação de Mestrado. Universidade Católica de Brasília. Psicologia. Brasília-DF; 2006. 207p.
Saporetti LA, Scartezini SN. Ritos de passagem e visão pós-morte nas Tradições Afro-Brasileiras: Candomblé e Umbanda. In: Santos FS, organizador. A arte de morrer – visões plurais. Vol. 2. Bragança Paulista: Comenius; 2009. p. 173-184.
Site: http://www.vetorial.net/~rakaama/lo-iansa.htm
Site: http://www.vetorial.net/~rakaama/o-omulu.htm

9 comentários sobre “O Significado da Morte e o Processo de Luto nas Religiões de Matrizes Africana: Candomblé

  1. Como cientista do curso de Ciências da Religião, da Universidade Estadual de Montes Claros-MG UNIMONTES, meu TCC será sobre a (finitude), a morte nas religiões de matriz africana, em especial na Umbanda. Seu artigo e suas referências foram de grande relevância para mim, obrigado e parabéns pelo artigo.

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  2. Olá, sou de Angola e adorei o documento. Estou agora num processo de pesquisa sobre rituais africanos na perda e no luto e o seu documento foi muito importante. Gostaria de manter mais contacto consigo para partilha de conhecimento nessa área. Obrigada.

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  3. Pingback: Ikú: qual o significado da morte para o candomblé? – Awure

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