“Eu me importo pelo fato de você ser você, me importo até o último momento de sua vida e faremos tudo que está ao nosso alcance, não somente para ajudar você a morrer em paz, mas também para você viver até o dia da sua morte” (Cicely Sauders)
Quando pensamos numa morte digna, logo pensamos num processo de morte sem dor e sofrimento psicoemocional. Contudo, nos dias atuais, com o avanço tecno-científico, os hospitais, em sua maioria, possuem um aparato técnico para prolongar a vida até o último recurso, esquecendo-se de que, segundo Moritiz e Nassar, na outra extremidade dos tubos, cabos e drenos, atrás de alarmes e restrito ao leito, encontra-se um ser humano. Eu percebo que há um frequente empobrecimento das relações humanas no âmbito hospitalar.
A ênfase na cura em detrimento do cuidado é fonte de significativo sofrimento não só para pacientes e familiares, mas também para os profissionais da saúde, que rotineiramente se deparam com os limites de suas propostas terapêuticas. (Bruscato; Kitayama, 2008).
Contudo, temos hoje a proposta de cuidados paliativos, que nos coloca frente aos problemas que emergem com os cuidados necessários ao final da vida, momento este crucial na existência humana.
A Organização Mundial da Saúde, originalmente em 1990 e em revisão de 2002, definiu cuidados paliativos como cuidados ativos e totais aos pacientes quando a doença não responde às terapêuticas curativas, quando o controle da dor e dos sintomas psicológicos, sociais e espirituais é prioridade, e cujo objetivo é melhorar a qualidade de vida dos pacientes. Trata-se de abordagem multidisciplinar que abrange cuidado ao paciente, à família e à comunidade.
O conceito de cuidado paliativo teve origem no movimento hospice, organizado por Cicely Saunders e seus colegas, que difundiram pelo mundo uma filosofia sobre o cuidar com duas noções fundamentais: o controle efetivo da dor e de outros sintomas, e o cuidado com as dimensões psicológicas, sociais e espirituais de pacientes e suas famílias. Com esse movimento propaga-se o conceito de cuidar, e não só curar, e de manter-se centrado nas necessidades do paciente, até a sua finitude. Com isso, um novo saber foi criado: o dos cuidados paliativos.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas uma em cada dez pessoas doentes e em estado terminal no mundo recebe cuidados paliativos, abordagem que visa garantir a qualidade de vida e amenizar o sofrimento de quem está na iminência da morte. Para a OMS, o acesso a esse tratamento é um “direito humano”.
Eu tive a honra de conversar com a Profa. Dra. Graça Mota Figueiredo, uma das maiores estudiosas do assunto em atividade no Brasil, sobre questões que permeiam os cuidados paliativos. Abaixo segue um pouco sobre o que conversamos.
Por que as pessoas se surpreendem quando nós falamos que trabalhamos com educação para a morte? Falar de morte é um tabu?
Para Dra. Graça, infelizmente, sim. A morte se apresenta como um grande tabu, assim como em décadas passadas fora o sexo. Parece que nossa sociedade tem vergonha de falar de morte e vivemos como se a morte não fizesse parte do cotidiano, principalmente na cultura ocidental. Temos a falsa impressão de que a tecnologia será capaz de nos livrar da finitude e isto nos afasta da possibilidade de discutir e refletir sobre esta questão que faz parte do ciclo da vida. Ela faz uma reflexão interessante, usando o ferramental da psicologia analítica – que tem como conceito o inconsciente coletivo, ou seja, um conjunto de sentimentos, pensamentos e lembranças compartilhadas por toda a humanidade: o inconsciente coletivo transcende o indivíduo e sua vida. Portanto, por meio dele, sabemos que somos eternos. Mas mesmo assim, temos medo da finitude.
Por que a equipe de saúde, e, principalmente, os médicos, possui dificuldade em comunicar ao paciente fora de condições terapêuticas de cura o seu diagnóstico e prognóstico?
Para Dra. Graça, os médicos possuem dificuldade em comunicar as más notícias ao paciente porque eles têm dificuldade de pensar na sua própria morte. Nós entendemos que má notícia é qualquer informação que drástica e negativamente afeta a perspectiva de um indivíduo sobre seu futuro. Os médicos e o ensino da medicina reproduzem, e não poderia ser diferente, o padrão social de repúdio à ideia da finitude. Muitos profissionais não têm coragem de falar consigo mesmo sobre a morte e, então, não conseguem falar com outro sobre o morrer. Dra. Graça diz que existem bons manuais sobre “comunicação de más notícias”, porém, eles não trazem nenhuma novidade. Não discutem a importância de se olhar para dentro de si e fazer uma análise da sua fragilidade diante de um processo de morte.
No seu entendimento, o médico se esconde por traz do corpo físico e tenta negar o psiquismo, pois assim ele não tem que se deparar com as suas próprias dores e, principalmente, com a dor causada pela impotência diante de um paciente que irá morrer. Infelizmente, sabemos que muitos médicos não cuidam de suas “dores da alma” de forma adequada e pouquíssimos se submetem a um processo psicoterapêutico.
Qual é o significado de “Dor Total”, termo introduzido pela Dra. Cicely Saunders ao cuidar de seus pacientes?
Dra. Graça conta-me que a Dra. Cicely fez questionamentos importantíssimos no modo de cuidar dos pacientes em processo final de vida. Com ela, houve uma quebra de paradigma, pois era preciso compreender o paciente além do corpo físico, e ela compreendia isso. Ela acolhia seus pacientes para além das dores físicas e olhava com muita atenção para as outras dores da existência humana. Existe a família que também precisa receber total atenção da equipe de saúde. Para Dra. Graça, a Dra. Cicely deu uma chacoalhada na medicina, pois é preciso manter os avanços, mas não podemos esquecer que aquele paciente é um ser humano.
A quem é indicado o tratamento de Cuidados Paliativos? Quem é o paciente que se beneficia efetivamente desse modo de cuidado?
Segundo Dra. Graça, a definição clássica é que cuidados paliativos é indicado para todos os pacientes que possuem uma doença sem possibilidade de cura terapêutica, potencialmente mortal desde o diagnóstico. Mas, infelizmente nem todos os pacientes recebem este cuidado. Segundo ela, cuidado paliativo não deveria ser entendido como um tratamento a parte, e sim, ser entendido como uma área da medicina. Ela possui uma “bandeira” de que deveríamos substituir cuidados paliativos por tão simplesmente medicina, e que os conceitos que permeiam esta área deveriam ser incluídos na formação do médico, independente da área médica que ele for se especializar.
Como se pratica o Cuidado Paliativo?
Ela conta-me que podemos colocar em prática os conceitos dos cuidados paliativos em vários lugares no hospital, em casa, no hospice e até mesmo no seu consultório. Às vezes precisamos ser criativos, mas o importante é poder oferecer este cuidado ao paciente neste momento de extrema fragilidade.
Quando, ou melhor, em que momento devemos oferecer cuidado paliativo ao paciente? E como se faz esta comunicação?
De acordo com ela, o cuidado integral deve ser oferecido a partir do diagnóstico, quando este for de uma doença crônica. Mas, de fato, é oferecido ao paciente quando há uma progressão da doença e ele está em processo de finitude. O aviso que o fim está chegando deve ser permeado de cuidado e afeto pois, neste momento, as emoções se afloram e, sempre que possível, a família deve ser envolvida. Família e paciente devem caminhar juntos durante este processo.
Quando se iniciou a prática de Cuidados Paliativos (CP) no Brasil? Quem são os precursores desta filosofia?
Dra. Graça conta-me algo que eu desconhecia: a primeira profissional que começou a prática de cuidados paliativos no Brasil foi a anestesiologista Dra. Mirian Martelete, do Departamento de Anestesiologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O Prof. Marco Tullio foi o pioneiro em educação em CP no Brasil; de fato, foi ele o primeiro a instituir Cursos de CP para alunos de graduação (na Unifesp) e, desde 1994 até a sua morte em 2013, manteve-se como uma das poucas vozes no país a enfatizar a necessidade de ensino de CP na graduação de todas as áreas da saúde. Para ele, era importantíssimo ensinar a prática de cuidados paliativos.

(Prof. Dr. Marco Tullio Barcellos de Assis Figueiredo (1925-2013), na Hospedaria do Jaçanã, SP – ICESP Fonte: Geribello (2012) – Arquivo Pessoal)
Quais são os serviços hospitalares, que você conhece, que oferecem esta filosofia do cuidar para seus pacientes?
Infelizmente, no Brasil não existe uma rede ampla de serviços de cuidados paliativos que são oferecidos à população. Contudo, a maioria está concentrada no Sul e Sudeste do país como, por exemplo, o Hospital de Câncer de Barretos, Hospital do Servidor Público Estadual, Hospedaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo e vários outros. Há também hospitais na rede privada que oferecem este serviço como, por exemplo, Hospital Paulistano e Sírio Libanês. No Nordeste, Dra. Graça destaca o trabalho da Dra. Inês Tavares na Unimed de Fortaleza. É claro que houve avanços nas últimas décadas, mas ainda precisamos evoluir muito até chegarmos a oferecer uma rede ampla de cuidados paliativos que contemple todo o território nacional.
Existem políticas públicas para a implantação efetiva da filosofia dos Cuidados Paliativos no SUS?
De acordo com a Dra. Graça não existem políticas públicas eficazes de implantação de CP no SUS. Ela diz que a regulamentação de opióides no Brasil é pífia. Quando comparado com outros países, o consumo de opióides, no Brasil, ainda é pequeno, principalmente pela falta de educação de todos para o seu uso adequado e pela falta de disponibilidade, especialmente no sistema público. E eles são de extrema importância para o controle da dor. Segundo ela, existem iniciativas como a resolução 1.805 do CFM que determina em seu artigo 1º que “é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal”. E existem outras iniciativas isoladas que estão tentando regulamentar as diretivas antecipadas de vontade, para que o paciente possa ter a sua vontade respeitada e amparada por lei quanto ao que deseja no seu final de vida.
No final da nossa conversa Dra. Graça enfatiza que ainda há muito para se fazer em termos de assistência no Brasil e é crucial e fundamental educar e preparar profissionais para a prática de cuidados paliativos. É necessário desconstruir conceitos já arraigados no ensino da medicina e integrar novos conceitos desde a graduação. A medicina paliativa está além dos muros que cercam os hospitais.
Após esta conversa com a Dra. Graça, eu penso que o fundamental quando cuidamos de um paciente em fase final de vida – pois este é, com certeza, o momento mais crítico vivenciado por um ser humano e sua família – é respeitar e valorizar o conjunto de valores que confere sentido ao viver e ao morrer daquele paciente. Precisamos, com urgência, discutir e refletir sobre o processo da qualidade de vida na terminalidade e as questões éticas que a permeiam.

Psic. Mestre em Cuidados Paliativos
Psic. Especialista em Perdas e Luto
Especialista em Psicologia Hospitalar
Psychotherapist Member of British Psychological Society (MBPsS/GBC)
Blog Perdas e Luto
Livro à Venda – Autora do Livro: Legado Digital: Conhecimento, Decisão e Significado – Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital
Este post teve a colaboração da Profa. Dra. Graça Mota Figueiredo
Profa. Dra. Maria das Graças Mota Cruz de Assis Figueiredo – Mestre em Ensino de Ciências pela Unifei-MG; Professora de Tanatologia e Cuidados Paliativos na Faculdade de Medicina de Itajubá-MG; autora de livros e capítulos de livros em CP; Co-tradutora do livro Bilhete de Plataforma (Derek Doyle).
Referências:
Bruscato, W.L.; Kitayama, M.M.G. Abordagem psicológica da dor no paciente grave. In: Knobel E, Andreoli PBA, Erlichman MR. Psicologia e Humanização: assistência aos pacientes graves. São Paulo: Atheneu; 2008. p. 133-145.
Costa Filho, Rubens C et al. Como implementar cuidados paliativos de qualidade na unidade de terapia intensiva. Rev. bras. ter. intensiva, São Paulo, v. 20, n. 1, p. 88-92, mar. 2008 .
Incontri, D.; Santos, F.S. organizadores. A arte de morrer – visões plurais. Bragança Paulista: Comenius; 2007.
Jacobucci, A.N.P. Caracterização clínica e psicossocial de pacientes hospitalizados sob cuidados paliativos. 2010.
Melo, A.G.C.; Figueiredo, M.T.A. Cuidados Paliativos: conceitos básicos, histórico e realizações da Associação Brasileira de Cuidados Paliativos e da Associação Internacional de Hospice e Cuidados Paliativos. In: Pimenta CAM, organizadora. Dor e cuidados paliativos: enfermagem, medicina e psicologia. Barueri: Manole; 2006. p. 16-28.
Moritiz, R.D; Nasar, S.M. A atitude dos profissionais de saúde diante da morte. Revista Brasileira de Terapias Intensivas, v. 16, n. 1, p. 14-21, 2004.
Pessini, L. Vida e morte: uma questão de dignidade. In: Incontri D, Santos FS, organizadores. A arte de morrer – visões plurais. Bragança Paulista: Comenius; 2007. p. 159-171.
World Health Oganization (WHO). WHO Definition of Palliative Care [online]. Geneva: World Health Oganization; 2006. Disponível em: http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en
A educação para a morte deve estar presente na formação do indivíduo ! Assim ele também atuará com aqueles que lhe concederão os cuidados paliativos no momento da sua finitude !
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Olá Carmen, interessante a sua colocação e absolutamente correta todos nós devemos nos envolver com o processo de morte e não apenas os profissionais da saúde. Abs, Nazaré
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Quando li na matéria que existe Cuidados Paliativos no Hospital do Servidor Público Estadual, não consegui acreditar. Não, sinto muito em dizer, não existe!!!!!!!
Lá existe a Ala dos cuidados paliativos, onde os pacientes vai morrer sem um pingo de dignidade , jogados, sem os mínimos cuidados. Minha tia foi para essa Ala de Morte, triste, dura, não só para ela, porque só seu corpo estava lá, mas com os parentes. Aquele lugar cheirava a morte, e o pior, sem dignidade alguma. A última vez que vi minha tia,estava ela, quase morta, suja, feia, sem cuidado algum. Se não fosse os parentes, com certeza, iriam encontrar ela morta depois de várias horas, pq se você chamava o corpo de enfermagem, elas não iam. Graças a Deus esse sofrimento nesta maldita ala durou 5 dias. Portanto no Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo, não existe cuidados paliativos e sim a Ala da Morte
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Olá Neide! Obrigada pelo seu comentário. Sinto muito em saber que sua tia não recebeu o atendimento desejado. Infelizmente, a filosofia de Cuidados Paliativos ainda é recente no Brasil e, por causa, dos poucos investimentos que o governo aplica em saúde pública o setor de CP dos hospitais não consegue atender toda a demanda da forma como deveria. Há muitos profissionais da saúde trabalhando muito para que a filosofia de CP se torne uma realidade em todos os hospitais da rede pública e que todos os pacientes possam morrer, num futuro, com qualidade e dignidade. Abs, Nazaré Jacobucci
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