Manchester à Beira-Mar: um mergulho na dolorosa experiência humana do luto e da culpa

“Luto complicado; é complicado” (Colin M. Parkes)

No último dia 06 de outubro eu participei do Complicated Grief Study Day, um dia inteiramente dedicado ao estudo e a reflexões sobre luto complicado promovido pela Child Bereavement, uma entidade inglesa que presta assistência às pessoas enlutadas. Dentre as palestrantes estava a Dra. Katherine Shear da Universidade Columbia – NY, uma autoridade no assunto. Fora um dia interessante. Contudo, fez-me refletir sobre a linha tênue que distingue um processo de luto natural e complicado. Esta distinção não é das tarefas mais fáceis de fazermos.

Quando perdemos alguém que amamos é absolutamente normal que a vida cotidiana pareça estranha e até mesmo confusa. Queremos, muitas vezes, alterar a realidade. Mas, sabemos que somos impotentes diante da morte. É comum sentir-se sozinho e perdido num mar de sentimentos e sensações que, muitas vezes, não conseguimos denominar. Este momento é necessário para nos ajustarmos psíquica e cognitivamente diante da perda, mesmo que nos pareça impossível continuar caminhando sem nosso ente querido. É neste momento que muitos pacientes me fazem a pergunta: quanto tempo o processo de luto durará? Tenho que confessar que, para esta pergunta não há uma resposta pronta e exata.

Entendemos que após uma perda significativa o indivíduo irá gradualmente integrando períodos de dor e tristeza com períodos mais positivos compostos por pequenas alegrias. À medida que o enlutado vai se adaptando à sua nova realidade a tendência é que a intensidade dos sentimentos vá diminuindo. A dor e a tristeza vão cedendo lugar para a saudade. O indivíduo começa a incluir novas possibilidades, novos afazeres e novas formas de experimentar satisfação em seu cotidiano. Mas, vale ressaltar que cada pessoa fará esta integração em seu tempo e de acordo com seus recursos internos e externos.

No entanto, há indivíduos que não conseguem fazer esta integração e sua dor e angústia parecem estar cristalizadas. Alguns estudiosos do tema definem que quando a pessoa não consegue se organizar psíquica e emocionalmente por um tempo deveras prolongado após a perda, e esta desorganização a impede de retomar suas atividades cotidianas e/ou restabelecer novos laços afetivos, esta pessoa pode estar vivenciando um processo de luto complicado (Braz; Franco, 2017). De acordo com Worden (2002), o paciente em processo de luto complicado pode apresentar queixas somáticas intensas e frequentes, mudanças radicais no seu estilo de vida, uma longa história de depressão subclínica, baixa autoestima e sentimento de culpa persistente.

Neste sentido, lembrei-me do filme Manchester à Beira-Mar (Manchester by the Sea) do diretor Kenneth Lonergan. Um filme interessantíssimo que nos revela as complexidades de um luto que deixou marcas profundas em Lee Chandler, o personagem central do filme. Aos poucos o espectador vai sendo convidado a adentrar pela vida de Lee que tem como base um ambiente angustiante e de uma tristeza profunda e desconcertante.

Lee é um zelador de condomínios residenciais em Boston. Infiltrações, aparelhos quebrados, vasos sanitários entupidos são problemas rotineiros em sua profissão. Ele mora em um porão e aparentemente leva uma vida desprezível. Ele não possui amigos, não gosta de seu trabalho e parece não nutrir nenhum sentimento positivo com relação às pessoas que o cercam. Temos a sensação de que Lee está sempre a olhar para o vazio e que neste vazio reside uma dor de dimensões inimagináveis.

Contudo, ocorre um fato que obrigará Lee a sair de seu fosso existencial. Ele recebe a notícia de que seu irmão, Kyle, que residia em sua cidade natal Manchester, morrera vítima de uma insuficiência cardíaca crônica. Lee precisará retornar à Manchester não apenas para cuidar de todos os trâmites legais referentes ao funeral do irmão como também, cuidar de seu sobrinho Patrick. No entanto, este retorno vai se revelando embaraçoso e por meio das memórias de Lee, que são contadas em flashbacks, começamos a compreender o porquê das dores de Lee.

A vida de Lee fora totalmente transformada numa noite fria em que ele discute com a esposa por causa da algazarra que estava fazendo com alguns amigos no porão da casa às duas horas da manhã. Lee dispensa os amigos e, embriagado demais para dirigir, ele resolve ir a pé até o mercadinho local para comprar fraldas. No retorno vê ao longe sua casa em chamas e sua esposa, Randy, desesperada na rua. Ele havia acendido a lareira devido à baixa temperatura do ambiente, mas não havia se atentado para as travas de lenha que geralmente se colocam para que as toras de madeira não rolem para fora. Um descuido que custou a vida de seus três filhos.

Neste momento entendemos porque Lee apenas sobrevivia no vazio de sua existência mergulhado numa rotina apática e traumatizada, recaindo frequentemente em brigas de bar que surgiam do nada e que nos faz crer que estas só serviam como atos punitivos para expurgar a culpa que lhe consumia. As lembranças de Lee vão nos revelando um indivíduo que se abandona ainda em vida e sua total incapacidade de compreensão do processo que estava vivenciando desde a morte de seus filhos. Lee experenciara um luto por trauma e as dores que este pode deixar são, por vezes, insuportáveis e nos afetam profundamente. Um nó difícil de se desvelar.

Um dos momentos mais impactantes do filme é quando Lee encontra sua ex-esposa casualmente na rua. O diálogo estabelecido entre eles deixa transparecer o quão o mesmo processo de luto pode ser vivenciado de forma completamente diferente pelas pessoas. De um lado Randy, que buscou reconstruir a sua vida e lhe dar um novo significado. Agora ela está casada novamente e possui um bebê. Ela tenta explicar que quando a tragédia aconteceu, ela não teve habilidade emocional para lidar com a situação e com o turbilhão de emoções pelo qual passara e, por isso, o culpou. Fica claro em sua fala que ela não deixou de amar Lee. Contudo, Lee não consegue estabelecer um diálogo com Randy. Ela reflete toda a sua dor. É como se nela estivesse impressa toda a tragédia de seu passado. É no olhar de Randy que ele percebe o quanto se distanciou do homem que fora e que hoje, em seu universo autopunitivo, jamais poderá vivenciar um momento de felicidade.

Uma nova chance para que Lee saia de sua caverna lhe é apresentada. Seu irmão, Kyle, o elegeu para ser o tutor de Patrick, papel que se nega a assumir. Lee está estagnado em sua dor e culpa e para ele é impensável que seria capaz de cuidar de um adolescente. Outro agravante é que ele teria que viver novamente em Manchester e isso seria remetê-lo às profundezas de seu sofrimento. Sua dor não fora amenizada com o decorrer do tempo, ao contrário, tornou-se mais profunda. Ele não parece ter o ferramental psíquico para mergulhar em suas dores e rever a ferida que não se curou. Isso seria uma possibilidade de ressignificar o que ocorrera. Porém, sozinho dificilmente Lee seria capaz de compreender que todos nós estamos sujeitos a fatalidades. Neste cenário um processo psicoterapêutico se faz necessário.

Segundo Fernandes (2017), este é um filme que nos mostra o quanto podemos estar desamparados diante das imensas tragédias da vida. Um filme que fala da tristeza que existe nos detalhes das dores que nos cercam, da raiva que não acha espaço para escoar, da falta que não pode ser preenchida e do amor que, infelizmente, não acaba.

Para mim, o filme nos mostra o que uma não integração dos conteúdos inconscientes vivenciados num processo de luto pode causar, o quão importante é o auto perdão, e a importância do processo psicoterapêutico para indivíduos que não possuem ferramental para, sozinhos, superar seu luto. Manchester à Beira-Mar nos faz refletir sobre a fragilidade humana diante da impermanência.

Psic. Mestre em Cuidados Paliativos (M.Sc.)
Psic. Especialista em Perdas e Luto
Especialista em Psicologia Hospitalar
Psychotherapist Member of British Psychological Society (GMBPsS)
Blog Perdas e Luto (Instagram)

Autora do Livro: Legado Digital: Conhecimento, Decisão e Significado – Viver, Morrer e Enlutar na Era Digital

Referências:

Braz, Mariana Sarkis; Franco, Maria Helena Pereira. Profissionais Paliativistas e suas Contribuições na Prevenção de Luto Complicado. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 37, n. 1, p. 90-105, jan. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932017000100090#B14

Faria, Marcos Thadeu Gurgel. Manchester à Beira-mar: quando o passado assombra. Janela Interna [site], fev. 2017. Disponível em: http://janela-interna.blogspot.co.uk/2017/02/manchester-beira-mar-passado-assombra.html

Fernandes, Parcilene. Manchester à Beira Mar: quando o luto é um mar profundo de dor e culpa. (En)Cena [site], fev. 2017. Disponível em: http://encenasaudemental.net/post-destaque/manchester-a-beira-mar-quando-o-luto-e-um-mar-profundo-de-dor-e-culpa/

Nascimento, Michael. ANÁLISE: Manchester à Beira-Mar. Ser ou não ser [site], fev. 2017. Disponível em: https://serounaosei.com/universo-e/analise-manchester-beira-mar/

Santos, Patricia Simone. Manchester à beira-mar. Psicologia & cinema [site], abr. 2017. Disponível em: http://www.psicologiaecinema.com/2017/04/manchester-beira-mar.html

Solano, Joao Paulo Consentino. Traumatic and complicated grief? Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 10, p. 4337-4338, oct. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232011001100029

The Center for Complicated Grief [site]. Columbia School of Social Work New York. Disponível em: https://complicatedgrief.columbia.edu/complicated-grief/lovelossgrief/

Volcof, Vinícius. Manchester à Beira-Mar: o nó górdio do luto quarta-feira. Portal Cinema com Rapadura [site], jan. 2017. Disponível em: http://cinemacomrapadura.com.br/criticas/432119/critica-manchester-a-beira-mar-2016-o-no-gordio-do-luto/

WORDEN, James William. Grief Counselling and Grief Therapy: A Handbook for the Mental Health Practitioner. 3th ed. New York: Springer Publishing Company, 2002. 330 p. Kindle Version.

5 comentários sobre “Manchester à Beira-Mar: um mergulho na dolorosa experiência humana do luto e da culpa

  1. Olá Nazareth! Adoro seus posts! Me chamo Ana Cecilia Britto Freitas e moro em Fortaleza-Ce- Brasil. Sou psicóloga do luto e estou terminando uma especialização em Intervenção em Situações de luto, em Porto Alegre. Amo o que faço e estou sempre lendo seus textos, me ajudam muito. Estou inaugurando uma clínica ( Novembro)só para intervenção em luto, onde irei dar cursos também. Esta é uma área pouco procurada aqui em Fortaleza pelos profissionais da saúde, e estou me esforçando para dar meu melhor. Tenho estudado muito e escrevendo algumas coisas também. Estou pesquisando alguns cursos no exterior como aperfeiçoamento, então se tiveres alguma coisa para me recomendar, ficaria muito grata. Abraço! Fique bem!

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